Editorial do Estadão
É intelectualmente pobre - e moralmente esquálida - a argumentação com que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, tentou justificar a abstenção do Brasil diante de um projeto internacional de resolução condenando o Irã por “violações recorrentes de direitos humanos”.
Apresentada por 24 países liderados pelo Canadá ao comitê da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) voltado para essas questões, a proposta destacou entre tais violações o apedrejamento como método de execução.
Foi uma referência óbvia à situação da iraniana Sakineh Ashtiani, sentenciada à lapidação por ter cometido adultério - embora fosse viúva. Diante dos protestos mundiais contra o que a presidente eleita, Dilma Rousseff, viria a qualificar como “uma coisa bárbara, mesmo considerando usos e costumes de outros países”, o Irã aparentemente modificou a forma da pena de morte para enforcamento, sob a alegação, fabricada às pressas, de que Ashtiani também assassinara o marido.
No comitê de direitos humanos da ONU, a resolução foi aprovada por 88 a 44 votos, com 57 abstenções.
Por ação ou omissão, ficaram do lado do regime liberticida de Teerã, além do Brasil, países como Cuba, Benin, Líbia, Síria, Sudão e Venezuela.
Entre os vizinhos, Chile e Argentina votaram contra o Irã.
Não é a primeira vez que, no governo Lula, o Brasil se nega a condenar notórios violadores das garantias fundamentais da pessoa, como se o país não tivesse firmado as convenções internacionais mais significativas a esse respeito, a começar da Carta da Organização das Nações Unidas.
Para o chanceler Amorim, a via mais efetiva para sustar os abusos perpetrados por ditaduras ou democracias de vitrine é o diálogo a portas fechadas.
Manifestações públicas e o apoio a sanções adotadas pela comunidade internacional, segundo ele, servem apenas para agradar a imprensa e “algumas ONGs”.
Trata-se de uma consternadora deturpação dos fatos.
Compromissos em privado e pressões ostensivas estão longe de se excluir.
Ao longo da história, muitas vidas foram salvas graças a diferentes modalidades de combinação, ditadas pelas circunstâncias, entre ambos os recursos.
A crer no ministro, o Brasil teria se abstido de alma leve na recente votação por duas razões.
Primeiro, porque “falamos diretamente (da questão do apedrejamento) com o governo do Irã”, o que seria muito mais eficaz do que as condenações aprovadas por outros países sem as mesmas “condições de diálogo” com Teerã.
E segundo, porque o País teria contribuído para a alegada decisão iraniana de suspender a lapidação.
“Não posso atribuir ao Brasil, porque seria pretensioso”, disse o chanceler, impado de pretensão, “mas em várias ocasiões já nos foi assegurado que o apedrejamento não vai ocorrer.”
A recusa do Itamaraty a afirmar na cena mundial os valores que o Brasil adotou com a redemocratização não apenas os subordina a um cálculo de conveniências que nem sequer demonstram ser vantajosas, mas prejudicam o País na frente externa.
Governos muitas vezes decidem patrocinar ou endossar condenações a regimes de força também para mostrar à opinião pública internacional de que lado se encontram da divisa que separa o humanismo da insensibilidade moral.
O mundo decerto não é uma confraria de querubins. Mas não há atenuantes para a cumplicidade com a barbárie.
No governo brasileiro, por sinal, há quem vá mais longe nesse rumo do que o chanceler Amorim.
Trata-se do seu colega da Defesa, Nelson Jobim.
Para ele, “essa questão de direitos humanos é ocidental” e o apedrejamento da iraniana não é “problema nosso”.
Numa caricatura rústica do conceito de relativismo cultural, Jobim chega a negar a existência de valores universais.
O que há “são hábitos”, e o Ocidente não pode impor as suas concepções.
A pretensão de fazê-lo, segue o disparate, é o que “produz intolerância” - e pode levar os países a “importar o terrorismo”.
Fosse Jobim ministro da Defesa de uma ditadura, o bestialógico ainda poderia ser interpretado como uma forma de autoproteção.
Nas circunstâncias atuais, é simplesmente incompreensível.
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