Não é tarefa fácil fazer um balanço dos dois mandatos presidenciais de Lula.
Como é sabido, ele elegeu a sucessora e sai do governo com alto índice de popularidade.(sic)
Remar contra a corrente não é tradição no Brasil.
O “adesismo analítico” é uma característica nacional, infelizmente.
E mais ainda agora, pela forma como o presidente se portou durante os últimos oito anos.
Lula criou um novo estilo de comunicação presidencial.
Na nossa história republicana não há paralelo.
Substituiu a rotina administrativa com eventuais manifestações públicas, típicas dos presidentes anteriores, por aparições constantes, sempre em clima de comício, buscando incessantemente o contato com os eleitores.
Nestes momentos — e foram centenas durante os últimos oito anos — discursava de improviso, tecia considerações sobre os mais variados temas, atacava seus opositores e estabelecia um vínculo direto com o povo.
Não era com o governo, com um programa, um partido.
Não. Era com ele.
Nestas cerimônias — a maioria delas, mero pretexto para discursar — o transformou no maior propagandista do seu próprio governo.
Mas não só: o reforço constante deste tipo de elo — o presidente e os eleitores — despolitizou a política, empobreceu o debate e fortaleceu o personalismo, tão nocivo à democracia, especialmente em um país em que as instituições democráticas e a cultura política são ainda frágeis.
Lula transformou a administração pública em espetáculo.
E obteve êxito.
Todas as denúncias — e não foram poucas — de corrupção, filhotismo e tráfico de influência caíram no esquecimento ou, no máximo, atingiram alguns dos seus auxiliares.
Ele saiu ileso.
A complacência do presidente banalizou a corrupção, desmoralizou as CPIs e legitimou o saque do Estado.
Lula deu nova vida às oligarquias.
Justamente ele que, durante tantos anos, dizia representar o novo.
Fez alianças com o que havia de mais atrasado na vida política nacional.
E não só: obrigou o seu partido a estabelecer acordos locais com os velhos oligarcas, alguns deles — caso de Sarney, no Maranhão — adversários viscerais dos petistas.
Desta forma, desarquivou das estantes empoeiradas da História o mandão local, concedeu legitimidade ao seu perverso domínio e desarticulou os movimentos antioligárquicos.
Esta é uma das mais pérfidas heranças deixadas por Lula.
Nestes oito anos, o processo de acumulação capitalista foi intensificado.
Seguindo o ritmo histórico brasileiro, o Estado continuou sendo o grande indutor da expansão econômica, assim como foi durante o Estado Novo, o populismo e a ditadura militar.
E como o setor privado não consegue acumular e crescer com suas próprias pernas, mais uma vez o Estado esteve presente.
Porém, ocorreram modificações importantes.
O BNDES jogou um papel fundamental, assim como os fundos de pensão das empresas estatais.
O governo Lula criou uma burguesia petista.
Fabricou milionários instantâneos, forjou gênios empresariais e transformou empreendimentos regionais em empresas mundiais.
Nem durante a ditadura, a grande burguesia teve apoio tão amplo e duradouro do Estado.
Se para o grande capital foram transferidos recursos, quase que a fundo perdido, para a classe média (no sentido mais amplo) foi ampliado o crédito em escala nunca vista, criando, por exemplo, no setor imobiliário uma bolha que pode estourar nos próximos anos, dependendo do que ocorrer na instável economia internacional.
O endividamento das famílias aumentou numa escala superior à do crescimento da renda.
O consumismo associado a uma taxa de câmbio sobrevalorizada levou amplos setores das classes médias a “lular”.
Numa escolha racional tupiniquim, optaram por fechar os olhos frente a crise ética e valorizar os ganhos econômicos, atitude parecida ao momento do milagre brasileiro (1968-1973), durante a ditadura.
Para os setores organizados, tanto urbanos como rurais, o governo obteve, através da cooptação das lideranças, a tão almejada “paz social”.
Foram anos de tranquilidade no campo da luta de classes.
As centrais sindicais foram domadas sem muito esforço.
Bastou repassar milhões de reais — que foram descontados dos salários dos trabalhadores, como contribuição obrigatória — para os seus dirigentes.
Aos barões do sindicalismo foram reservados também centenas de nomeações no Ministério do Trabalho, no Sebrae e no Sesi.
No campo, o MST recebeu generosas dotações oficiais e até esqueceu que o governo Lula distribuiu menos terras que o “neoliberal” FHC.
As mutações ideológicas chegaram até aos partidos que estariam à esquerda do PT, como o PCdoB.
O antigo partido do socialismo foi seduzido pelos recursos destinados ao Ministério dos Esportes e acabou se transformando no partido do lazer.
Trocou como leitura de cabeceira Karl Marx por Paul Lafargue.
Mas o pulo do gato foi buscar apoio eleitoral nos setores desorganizados, onde o PT era muito frágil, entre os menos escolarizados e com renda inferior a um salário mínimo.
Sem vontade própria ou poder de mobilização, os beneficiários do Bolsa Família transformaram- se naquilo que todo governo conservador almeja: são fiéis e obedientes eleitores do oficialismo.
Temeroso ao extremo, Lula fez uma pálida gestão econômica.
Sem a mínima ousadia, buscou resultados seguros e imediatos, sem nenhuma visão estratégica.
Não foi um estadista.
Longe disso.
Assemelhou- se a um presidente da República Velha.
Priorizou o setor primário da economia e desindustrializou o país.
Soldou uma estranha aliança econômica entre o capital financeiro e o setor exportador.
O conservadorismo político-econômico também esteve presente na política externa.
As causas democráticas e humanistas foram abandonadas.
O Brasil alinhou-se com ditaduras stalinistas, caudilhos passadistas e teocracias.
Nas disputas internacionais, o país perdeu todas.
Por paradoxal que pareça, Lula considerou uma vitória a sucessão de derrotas.
No campo social, o avanço foi pequeno.
Na educação, continuamos com milhões de analfabetos adultos e com um ensino fundamental formando alunos que desconhecem a língua portuguesa e as quatro operações matemáticas.
Os programas de habitação popular nunca atingiram as metas previstas.
O saneamento básico apresenta um quadro dantesco.
Os programas de erradicação da pobreza fracassaram.
Mesmo assim, foram nas regiões mais miseráveis que a popularidade de Lula atingiu os índices mais altos.
É provável que este quadro não se repita no próximo quadriênio presidencial.
Uma política de contemporização das contradições sociais e econômicas não permanece eficaz por longo tempo.
Além do que, o gestor presidencial precisa ter legitimidade política, que é produto de uma história pessoal, e uma capacidade de equilibrar e conviver com tensões e pressões cotidianas.
Mas não só: o cenário econômico internacional apresenta uma séria possibilidade de crises intermitentes, e, internamente, dado o conservadorismo, temos uma base econômica frágil.
■ Marco Antonio Villa é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos.
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