terça-feira, 11 de janeiro de 2011

UMA FLOR DE PESSOA

Xico Graziano

Muita gente confunde as orquídeas com parasitas.
Mas não tem nada a ver.
As parasitas vivem às custas de seus hospedeiros, neles introduzindo suas raízes para lhes sugar a seiva.

Esse fenômeno, próprio das chamadas ervas más, não ocorre com as orquídeas.
Elas simplesmente “moram” sobre as árvores.
Epífita: assim se denomina botanicamente sua situação.
Embora existam espécies terrestes, normalmente as orquídeas se apresentam longe do chão, com quem estabelecem uma associação sadia, agarrando-se com suas grossas raízes nos galhos sem prejudicar ninguém.
Lá em cima, buscam luz sombreada e aproveitam-se da água e dos nutrientes que encontram nas cascas do parceiro, cheios de materiais em decomposição enriquecidos com a poeira trazida pelos ventos.
Vivem numa boa sem atrapalhar ninguém.

As flores de orquídeas encantam a Humanidade há milênios.
Surgidas há 84 milhões de anos, as orquídeas se espalharam pelo mundo, inexistindo apenas na Antártida.
Dizem que Confúcio, o grande filósofo oriental, por elas se interessou, indicando que foram os chineses os primeiros a destacá-las em sua cultura ornamental.

Colecionadores e aficcionados sempre zelaram pelas orquídeas de forma amadora, pouco comercial.
Seu cultivo exige estufas adequadas, nas quais se busca reproduzir o microclima – umidade e luz – das matas onde se escondem.
Outra razão é seu restrito florescimento, verificado apenas uma vez ao ano.

Lindas e raras, assim sempre foram consideradas as orquídeas.
Há muitas décadas, porém, essa história começou a mudar.
Tudo se iniciou com a descoberta do processo de hibridação vegetal, através do qual se realiza, em laboratório, o cruzamento de duas espécies nativas de orquídeas, gerando um descendente inusitado.
No Brasil, somente por volta de 1950 a técnica começou a ser pioneiramente aplicada por um médico mineiro, o Dr Alberto Carlos Pereira Junior, de Guaxupé.
Professor de biologia e apaixonado por essas maravilhosas flores, após anos de tentativas e erros promovendo a germinação das minúsculas sementinhas das orquídeas cruzadas no laboratório doméstico, onde aprimorava sua docência em biologia, a hibridação ganhou seu lado comercial nos viveiros Rinaldi, destacado floricultor paulista de então.

Estima-se que atualmente se cultivem cem mil híbridos de orquídeas no mundo, inscritas obrigatoriamente na Royal Horticultural Society, em Londres.
É para lá que acaba de ser enviada a solicitação do registro da Rhynchosophrocatttleya Ruth Cardoso, uma deslumbrante orquídea desenvolvida pelo Desembargador e orquidófilo paulista Damásio de Jesus.
Com flores amarelas e um pequeno detalhe vermelho no labelo, a nova orquídea foi apresentada na inauguração do Orquidário Ruth Cardoso, situado ali no Parque Villa Lobos, capital paulista.

Obra dos arquitetos Décio Tozzi e André Graziano, o caprichado orquidário é único no mundo.
Única e especial também foi Ruth Vilaça Corrêa Leite, nascida em Araraquara, interior paulista, no início da primavera de 1930.
O Brasil jamais se esquecerá da simpática primeira dama que odiava bajulação, preferindo ostentar sapiência.
Antropóloga, professora universitária da USP, sua trajetória de vida combinou ensino e pesquisa com liderança na sociedade civil.
A defesa dos direitos das mulheres e dos jovens, o fortalecimento da democracia, a construção de uma ordem mundial mais justa, foram os principais campos de atuação de Ruth Cardoso em prol do desenvolvimento e da paz social.

Durante o mandato presidencial de seu marido, Fernando Henrique Cardoso, Ruth fundou e presidiu o Conselho da Comunidade Solidária.
A iniciativa mobilizou parcerias entre ONGs, universidades, empresas e governos para a construção e a difusão de programas sociais inovadores.
Contra o clientelismo político, a favor da emancipação humana.
Intelectual famosa, jamais perdeu o jeito simples de viver.
Gostava de cozinhar, adorava quitutes, colecionava vidraria, fazia amizades, adorava plantas e flores.

Ruth Cardoso foi, realmente, exemplar.
Para ela escrevi um singelo poema, tristemente inspirado no dia de seu falecimento, quando me ocorreu homenageá-la sugerindo ao governo construir o orquidário que hoje leva seu nome, um local de exposição das mais belas flores que existem.

“Sobre sua lápide repousava uma enorme flor de catleya.
Quem ali a colocou para espantar a tristeza da morte sabia de seu gosto pela vida.
Meiga, singela, cultivava o hábito das pessoas simples do interior.
Intelectual, professora, curtia a existência com graça e ternura, sempre acompanhada pelas flores, as orquídeas em especial.
Era o que eu mais pensava naquele momento dolorido: Ruth Cardoso era uma flor de pessoa”.

Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, no dia 14/12/2010.

Íntegra aqui.

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