domingo, 25 de setembro de 2011

A régua civilizatória

Por Gaudêncio Torquato


Cena pungente 1: crianças de olhos vidrados, pele e osso, e bandos de moscas passeando sobre os rostos côncavos.
O documentário na TV mostra o campo de refugiados de Badbaabo, o maior de Mogadício, capital da Somália.

Um dado arremata a lúgubre paisagem: a fome no mundo mata uma criança a cada 5 segundos.

Cena pungente 2: flagrante de um menino preparando uma pedra de crack, no centro de São Paulo (capa de O Estado, 21/09), ilustrando matéria sobre usuários da droga, que se igualam (38%) aos viciados em álcool na rede pública de saúde em cidades paulistas entre 50 e 100 mil habitantes.

Cena pungente 3: no hospital de Emergência e Trauma, em João Pessoa (PB), o vídeo mostra uma furadeira de parede sendo usada para abrir o crânio de um paciente que sofreu um acidente de moto.

As três cenas, mesmo diferentes, deixam transparecer sua origem comum, eis que são raízes da frondosa árvore da miséria com que se defronta o planeta nesse inicio de segunda década do Terceiro Milênio.

Já se disse que o mundo está dividido, hoje, em três espécies de nações: aquelas onde as pessoas gastam rios de dinheiro para não ganhar peso; aquelas em que milhões de seres comem para viver e os devastados territórios onde os famintos não sabem de onde virá a próxima refeição.

Na perspectiva do pão sobre a mesa, a visão planetária é aterradora, pois um bilhão de pessoas passa fome, ao lado de outro bilhão e meio que vive na pobreza.

Aqui, em nossos trópicos, fez-se e faz-se enorme esforço para aliviar as cotas de miséria.
Mas, é forçoso reconhecer, há, ainda, milhões de barrigas vazias, ao lado dos olhos sem vida de milhares de crianças desnutridas.

Temos, sim, um pouco de Somália resvalando pelas beiradas sociais.

Como o solo devastado extrapola a fronteira do alimento, conveniente seria que este planeta cada vez menos azul usasse um termômetro mais sensível para medir o grau de desenvolvimento dos 195 países independentes que o integram, algo como uma régua capaz de aferir se a condição humana recebe vitamina para desenvolver seus plenos potenciais.

A régua civilizatória – eis o que se propõe – teria função maior do que a de medir o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH que compara países por vetores da economia e qualidade de vida, com base numérica entre 0 e 1.

(lembre-se que, nesse modelo, o Brasil registra 0,699, 73ª posição entre 169 países)

Nossa régua abrigaria todo o escopo dos direitos humanos fundamentais, a partir da pletora de valores éticos, morais e políticos, base da vida com dignidade, liberdade e igualdade.
(...)

Já no palanque, a expressão dos grandes atores causa arrepios:

“Político tem que ter casco duro.
Se tremer cada vez que alguém disser uma coisa errada sobre ele e não enfrentar a briga para dizer que está certo, acaba saindo mesmo”.


O ator/autor, Luiz Inácio, simplesmente sugere aos políticos envolvidos em escândalos reagir.
Não baixar a cabeça.

O mandonismo, o caciquismo, o fisiologismo e o patriarcalismo, frutos da seara patrimonialista, continuam a escapar de seu tradicional reduto para se infiltrar em outros compartimentos institucionais. A perplexidade avulta.
(...)

O Brasil, esta é outra imagem, é submetido permanentemente a uma disputa de cabo de guerra: uns puxam para a frente, outros, para trás.
O exército de vanguarda carrega o país para o futuro.
O grupo de retaguarda sustenta os feudos do passado.

Em nossas vitrines, vêem-se as mais revolucionárias ferramentas do desenvolvimento e da tecnologia.
A face moderna do Brasil - quase-potência.
Ao lado da estética de Mogadício, de crianças sem forças para verter uma lágrima.
Um território bárbaro. Um faroeste.

Ainda longe da Pátria e da Nação, habitat de civilidade, igualdade e dignidade.

Íntegra no blog do Noblat
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação

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