Cristovam Buarque, O Globo
O Brasil começa com um gesto de generosidade invertida: civilizar os índios, explorando sua mão de obra e obrigando-os a converter suas almas a uma religião que lhes era estranha.
Depois de quatro séculos, o Brasil começou a ser generoso com os escravos africanos: fez a Lei do Ventre Livre. Os filhos de escravos seriam libertos, mas as mães continuavam escravas. Houve a generosidade também com os velhos escravos, quando já não poderiam mais trabalhar.
A Lei Áurea foi outra de nossas generosidades: os escravos já não poderiam ser vendidos, nem obrigados ao trabalho forçado, mas não lhes demos terra para produzir a própria comida, nem escolas a seus filhos.
Mais recentemente, quase no quinto centenário da existência do país, fomos generosos estabelecendo um salário mínimo. Mas tão mínimo que sempre foi insuficiente para cobrir os custos básicos dos serviços e bens essenciais.
Para não ficar sem trabalhadores há outra generosidade: o vale-refeição. As famílias ficavam sem comida, mas os trabalhadores recebiam a comida que o salário não permitia.
Para não ficar sem trabalhadores há outra generosidade: o vale-refeição. As famílias ficavam sem comida, mas os trabalhadores recebiam a comida que o salário não permitia.
Durante a escravidão fomos generosos oferecendo “casa” para os escravos: as senzalas fétidas e insalubres.
Quando a industrialização pôs os trabalhadores morando distantes do lugar do trabalho, e o salário não permitia pagar passagem de ônibus, oferecemos, generosamente, vale-transporte, mesmo que no final de semana ele e a família não possam visitar parentes ou passear no centro da cidade.
Temos sido generosos ao oferecer renúncia fiscal no cálculo do Imposto de Renda para financiar escolas particulares, inclusive dos filhos de ricos, em um valor superior ao gasto médio anual por criança na escola pública, sobretudo dos filhos de pobres.
Generosamente oferecemos Bolsa Família, mas não nos comprometemos em emancipar os pobres da necessidade de bolsas.
Generosamente não oferecemos creches e pré-escolas para nossas crianças, provocando desespero em milhares de mães que precisam trabalhar, por serem obrigadas a deixar seus filhos com outros filhos ou com vizinhos.
Generosamente oferecemos também cotas para facilitar o ingresso de jovens negros na universidade, mas não fazemos o esforço necessário para erradicar o analfabetismo que tortura cerca de 11 milhões de brasileiros, em sua grande maioria de negros e pardos.
Somos generosos facilitando o endividamento de famílias da Classe C para comprar carros a serem pagos em até 100 meses, sem IPI, mas não eliminamos impostos sobre a cesta básica, nem melhoramos o transporte público para todas as classes, inclusive D e E.
Nossa generosidade chega ao cúmulo ao gastarmos muitos bilhões de reais para fazer no Brasil as Copas e as Olimpíadas, que nossos pobres vão assistir pela televisão, e não adotamos o compromisso de investir os Royalties do petróleo na educação de nossas futuras gerações.
Somos um país coerente, com cinco séculos de generosidade seletiva invertida, ou pervertida.
Leia em Generosidades invertidas
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