Comissão da Verdade, Brilhante Ustra e Dilma: do trágico ao ridículo
Por Reinaldo Azevedo
Na sexta-feira, a Comissão da Verdade ouviu o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou DOI-CODI entre 1970 e 1974. Ele negou que tenha havido tortura no tempo em que comandou o órgão. Todas as evidências factuais, além de testemunhos de sobreviventes, apontam o contrário. Próceres do Regime Miliar, como o ex-ministro Jarbas Passarinho, admitiram a existência dos porões. Não foi diferente com o próprio presidente Ernesto Geisel, quando, no dia 19 de janeiro de 1976, deu um murro na mesa e afastou o general Ednardo D’Ávila Melo do Comando do II Exército (ao qual era subordinado o DOI-CODI), onde estava havia menos de dois anos. Três meses antes (25 de outubro de 1975), Vladimir Herzog havia sido assassinado nas suas dependências. No dia 17 de janeiro, foi a vez do operário Manuel Fiel Filho. Geisel, então, resolveu comprar a briga com a linha dura do regime. Negar que tenha havido tortura no DOI-CODI é negar os fatos. Só que, no depoimento de sexta-feira passada, Ustra não foi o único a atropelar a história.
Vamos ver. Num dado momento de seu depoimento à Comissão da Verdade — o coronel obteve na Justiça o direito de ficar calado, mas preferiu falar —, afirmou Ustra: “Cumpri ordens legais. O objetivo dos terroristas era a implantação de uma ditadura do proletariado, do comunismo. Isso está escrito no estatuto de todas as organizações terroristas, inclusive no das quatro que a presidente da República participou.”
Foi um deus nos acuda. Boa parte da imprensa brasileira, em tom exclamativo, resolveu fazer alarde: “Ustra diz que Dilma participou de grupos terroristas”, como se, nesse caso, o país estivesse diante da mera “versão do torturador”, e também isso, a exemplo da negativa de que tenha havido tortura, fosse apenas mais uma manifestação contra a evidência dos fatos.
Pergunto: A COMISSÃO DA VERDADE ESTÁ OU NÃO PREPARADA PARA LIDAR COM A VERDADE?
Não sei de onde o coronel tirou a quarta organização. Uma coisa é certa: a agora presidente pertenceu a TRÊS grupos terroristas: Polop (Política Operária), Colina (Comando de Libertação Nacional) e VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares), que surgiu da união da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) com o Colina.
Todas essas organizações admitiam métodos terroristas para
a) derrubar o Regime Militar;
b) implantar o comunismo no Brasil.
E todas elas mataram pessoas inocentes em sua “luta”, admitindo pôr em risco a segurança de inocentes para que a “luta” pudesse avançar. O Colina, aliás, é tratado como grupo que aderiu ao terrorismo pelo livro “Combate nas Trevas”, escrito por Jacob Gorender, um comunista.
Quem queria democracia? Ustra certamente não a queria. E Dilma também não. Consta que ela, pessoalmente, não matou ninguém. Mas as organizações a que pertenceu mataram. Ela foi quadro dirigente da VAR-Palmares. Não consta que se dedicasse ao piano e à declamação de poesia. Deveria ter sido torturada por isso? Resposta óbvia: não!
Se a questão é falar em termos puros, cumpre observar: a quem devemos mais reverência? Ao terrorista ou ao torturador? A minha disposição é não querer formar uma civilização nem com um nem com outro; é não chamar para jantar nem um nem outro.
Os que negam e os que se orgulham
Vejam que curioso: contra a evidência dos fatos, o coronel Ustra nega que tenha havido tortura no DOI-CODI sob o seu comando. Como está numa Comissão da Verdade que atua como Comissão de Revanche, é o esperado, ainda que esse grupo não tenha como encaminhar processos de natureza criminal. A questão que conta ali é outra: trata-se de um acerto de contas, vamos dizer, de natureza moral. Ustra nega a tortura porque sabe que isso é uma mácula. Nega porque sabe que não há como justificá-la naquelas circunstâncias — no mundo contemporâneo, o terrorismo recoloca, de maneira nefasta, a questão: a tortura de um terrorista que tenha uma informação que possa salvar centenas ou milhares de vidas é moralmente aceitável? Pensem aí. Ustra nega porque sabe que está diante de um anátema.
Notem, no entanto, que os terroristas de antes, alguns deles homens e mulheres de Estado hoje em dia, se orgulham do que fizeram. Continuam a emprestar um tom heroico a suas escolhas. Chegam mesmo a mentir: teriam todos lutado por democracia. Ora, isso é escandalosamente mentiroso, não é mesmo? E não estou, com isso, dizendo que os dois lados eram iguais. Não! Eram diferentes! Cada visão de mundo era nefasta à sua maneira. É claro que o Estado, que tem o monopólio do uso legal e legítimo da força, deveria ter combatido de pronto a tortura ou os métodos que não eram aceitos pela legalidade — porque havia uma — da própria ditadura. Os crimes então cometidos, então, se tornaram crimes de estado. Isso é inegável! E ele tem, sim, de assumir as suas responsabilidades.
Só que, atenção!, o mesmo Estado que criou a Comissão de Anistia, que decidiu pagar as indenizações e pensões (há casos escandalosos de fraude moral e política, é bom lembrar) e que instituiu a Comissão da Verdade também aprovou a Lei da Anistia. E anistiou os excessos de ambos os lados. E anistiou tanto os torturadores como os terroristas. Aí o apressadinho salta da cadeira: “Pegamos a falácia argumentativa! O Estado que criou a Lei da Anistia ainda era o ditatorial; o que criou a Comissão da Verdade é o democrático!”. Pois é… Falacioso é esse raciocínio! Afinal, aquele que torturou e matou também era o ditatorial. Por que a reparação deveria ser feita, então, pelo democrático?
A verdadeira sandice
A verdadeira sandice, esta sim, é o país ficar preso a esse Dia da Marmota, dedicando-se a recontar a história dos últimos 50 anos, com uma pauta já definida, destinada a linchar moralmente os “bandidos” e santificar os “heróis”. Noto que a imprensa registrou a fala de Ustra, tratado o tempo inteiro como torturador ainda hoje, mas não informou com clareza que Dilma efetivamente pertenceu a grupos terroristas. Não, senhores! Eu não estou aqui a dizer que isso os iguala. Tanto não os iguala que estavam em lados opostos da contenda. Isso os diferencia no erro.
Eu tinha 16 anos quando fui importunado pela ditadura, denunciado por um professor — sim, alguém que deveria ajudar a me instruir me denunciou! Há outros professores, vivos e lúcidos, felizmente, que se lembram do caso. Poucas coisas, suponho, podem ser tão asquerosas quanto isso. O dito-cujo era um juiz de menores que dava aula, ligado ao Deops. Tenho uma péssima memória do período e sei o medo que passei. Em 1977, os dias ainda não eram nada tranquilos. Não tenho por que simpatizar com Ustras e congêneres. Mas não me peçam para endossar uma patuscada revanchista que, de resto, não nos conduz, como país, a lugar nenhum! Ao fim da jornada, essa Comissão terá apenas dado corpo a mistificações que não servem à elucidação da história, não servem, por óbvio, aos mortos de ambos os lados e só interessa mesmo aos vivaldinos que querem usar os confrontos de quase um século atrás para justificar pilantragens presentes.
Sim, houve torturas e mortes no DOI-CODI.
Sim, Dilma integrou três grupos terroristas.
Sim, Dilma integrou três grupos terroristas.
Assim como aquele Estado, mesmo ditatorial, não poderia ter sido posto, como foi, a serviço da violência, o de agora, democrático, não pode ser usado para fraudar a história. Usar o justo repúdio à tortura para transformar o terrorismo em escolha heroica é coisa de pilantras e oportunistas, que reivindicam licenças especiais para lambança não em 1964, não em 1968, não em 1974. Esses são tempos mortos. Querem é ser tratados acima do bem e do mal em 2013, em 2014, eternidade afora se possível. A história é rica em exemplos. Um país que tem uma comissão estatal da verdade está apenas redigindo uma mentira oficial.
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