Míriam Leitão, O Globo
Um surto de manifestação como o que se espalhou pelo Brasil nos últimos dias nunca tem uma explicação simples. É preciso humildade para admitir que ele não está inteiramente compreendido. Existem pistas. Ele tem a vantagem de quebrar a convicção de que o brasileiro suportaria todo o desaforo sem reagir: da deterioração dos costumes políticos ao desconforto econômico.
Há razões conjunturais e outras mais antigas para justificar qualquer manifestação de protesto no Brasil. A inflação está alta há muito tempo, o nível de inadimplência cresceu e isso eliminou o amortecedor que o crédito vinha exercendo, o desemprego de jovens chega a quase 16% em São Paulo.
No início da nova legislatura, o Congresso escolheu, para presidentes das duas Casas, líderes e integrantes de comissões que foram vistos como um acinte pela população. A lista com 1,3 milhão de assinaturas coletadas em tempo recorde contra Renan Calheiros na presidência do Senado foi ignorada com desprezo.
O mamútico governo federal, montado com 39 ministérios, faz anúncios sequenciais de planos que não se transformam em realidade.
Em cada pronunciamento de sua campanha eleitoral antecipada, a presidente Dilma desenha um país cor de rosa onde tudo está resolvido, exceto por alguns da “turma do contra”.
Em cada pronunciamento de sua campanha eleitoral antecipada, a presidente Dilma desenha um país cor de rosa onde tudo está resolvido, exceto por alguns da “turma do contra”.
Ontem, ela elogiou o movimento das ruas. Falta só agora conciliar o elogio aos protestos com a sua visão de que o governo faz tudo certo, que o país vai muito bem, e só os que torcem pelo pior é que não reconhecem.
O movimento é heterogêneo, apartidário, sem lideranças claras. As reivindicações são muitas. Como em qualquer onda de descontentamento, há sempre um estopim. Desta vez foi o aumento da tarifa de ônibus, que havia sido adiado. Mas o estopim é só isso: a gota que transborda o copo já cheio pelos desaforos diários.
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O governo do PT cooptou a maioria das organizações de representação da sociedade civil. Sindicatos e centrais sindicais, algumas ONGs, movimento estudantil, e até o Movimento dos Sem-Terra, recebem recursos federais e ficam na órbita do governo. Já não representam os interesses dos representados.
A UNE acaba de eleger sua nova presidente. Mais uma vez não se sabe como foi a escolha, mas já se sabia de antemão que seria do PCdoB. Como tem sido por décadas. Há muito tempo a UNE deixou de justificar o nome e virou um feudo do partido da base governista. É plataforma de lançamento do partido.
Na economia, a inflação de alimentos está em 13,5% e tem estado persistentemente em níveis altos, a de serviços está em 8,51%, as famílias já comprometem quase um quarto da sua renda mensal com o pagamento de dívidas.
O desemprego de jovens tem índices de 12,6% no Rio, 15,9% em São Paulo e 17,4% em Salvador. Nada disso é novo, mas o torniquete foi rodando. Famílias com ambições recentes alimentadas pela abundância do crédito já sentem o efeito colateral.
Para a imprensa, o desafio é enorme diante de tantas demonstrações de protesto. O maior erro dos jornalistas e das pesquisas de opinião foi não ter percebido o avanço do descontentamento.
Mas, se nessa pilha de motivos para a insatisfação fosse necessário escolher um, talvez o mais acertado seja essa sensação de divórcio entre os governantes e os brasileiros. Movimentos como esse produzem alguns excessos, mas sempre fortalecem a democracia. É preciso ouvi-los.
Leia a íntegra É preciso ouvi-los
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