Ruy Fabiano
É emblemático (e surpreendente) que justamente o futebol – “a pátria em chuteiras”, segundo Nélson Rodrigues – tenha se transformado no símbolo da rejeição popular aos desmandos do status quo governamental.
Ninguém – nunca, jamais – poderia supor que uma sociedade tão desigual, com interesses tão diversificados, se uniria num coro comum e indignado contra uma Copa do Mundo em solo nacional – que, desde sempre, tinha efeito exatamente oposto.
A Copa do Mundo era o único momento em que o país se sentia uma nação, com um elo unificador, que levava seus cidadãos a vestir-se com as cores nacionais e a ostentar a bandeira do país. Divergências clubísticas, regionalistas, desapareciam.
O Brasil tornava-se um só. Nenhum outro evento o unia de tal forma. Podia-se dizer que, se não éramos ainda uma pátria, éramos ao menos um time. Não se trata de elogio ou crítica, mas de uma constatação. Só a Copa nos unia.
Foi embalado por essa realidade que o governo Lula se empenhou em trazer esse evento para o Brasil. Muniu-se de algumas celebridades nacionais – Pelé, Ronaldo Fenômeno e Paulo Coelho – e deu início a um lobby que resultou triunfal. Disputou com países influentes, como Espanha e Inglaterra – e venceu.
Tudo foi calculado dentro de uma lógica cartesiana: ano de eleição, país do futebol, dividendos políticos para o governo, promotor do evento. Saiu pela culatra. Descartes, no Brasil, não iria muito longe. E política, aqui e em toda parte, não é exatamente um jogo lógico, racional. Ao contrário, nutre-se do imponderável.
A exigência do padrão Fifa, que tornou nossos estádios – inclusive o Maracanã, “o maior do mundo” – anacrônicos como o Coliseu, expôs aos olhos do público velhas práticas de nossa vida pública: superfaturamento das obras, licitações de araque (depois, inclusive, dispensadas por lei, em nome da aceleração das obras) e quadruplicação dos orçamentos inicialmente previstos.
Não bastasse, a manipulação política do evento, distribuindo-o por mais de vinte cidades – a maioria sem expressão futebolística, como Brasília –, impôs a construção de estádios (agora chamados de arenas) monumentais que, na sequência, não terão serventia – não nas proporções em que foram construídos.
As cifras estonteantes não tardaram a gerar o efeito comparativo. Um país com péssima rede hospitalar, escolas lastimáveis, professores mal-remunerados, com déficit de habitação etc. etc., gastando fortunas com um evento desnecessário.
Por mais que o governo se esforce em argumentar que há ganhos colaterais bem mais expressivos – e ainda que isso seja verdade -, é impossível vencer o poder simbólico dessa argumentação: o confronto entre prioridades.
As carências nacionais são antigas e sempre se argumenta que não há recursos para atendê-las. Mas, diante de uma Copa, o dinheiro logo aparece. Surgem arenas magníficas, removem-se habitações pobres e tudo o que possa enfeá-las, promete-se realocar os despejados e coisas do gênero.
A mensagem explícita: quando se quer fazer alguma coisa, não há obstáculo. Por que tal iniciativa não ocorre em relação a temas essenciais, como saúde, educação e segurança, prioridades mencionadas por todos os candidatos em todas as eleições?
O futebol (quem diria?) acabou trazendo à tona questões antigas – e sérias -, em analogias inesperadas, que tornaram o evento não uma festa, mas quase uma provocação. É claro que interesses político-eleitorais buscam tirar proveito da indignação geral, mas isso não a torna menos real e legítima.
O PT, que esperava ver no discurso de abertura da “Copa das Copas” sua presidente e candidata em momento triunfal, já a excluiu da solenidade de abertura. Sabe que a vaia será inevitável, como, aliás, já ocorreu na abertura da Copa das Confederações. Dilma não discursará, talvez nem compareça.
A Copa foi um gol contra, com efeitos políticos e prováveis reflexos futebolísticos. O Brasil já não é o mesmo. O futebol, quem diria, está sendo o veículo da mudança.
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