No país das cigarras: o longo inverno
Inflação, rombo nas contas públicas, juros altos, arrocho, paralisia econômica: o Brasil paga caro pela imprevidência e o imediatismo de seus governantes. Sem confiança nas regras do jogo e sem uma visão clara e realista de longo prazo, o brasileiro está condenado a repetir o triste papel da cigarra, mesmo que trabalhe e pague impostos como a formiga
Por: Daniel Jelin e Marcella Centofanti
Por: Daniel Jelin e Marcella Centofanti
Saul Bellow: Aproveita o dia. Goethe, Mae West: Só se vive uma vez (James Bond: Só se vive duas vezes...) James Dean, Gandhi, Steve Jobs: Viva cada dia como se fosse o último. Horácio, dois mil anos atrás: Carpe diem, preocupa-te o menos possível com o amanhã.
Nem precisava de tanto incentivo: aproveitar o dia é nossa inclinação natural. É a disposição inata de uma espécie oportunista. Inversamente, resistir às tentações do presente em troca de uma boa recompensa no futuro, isso sim é um hábito que custa aprender. Cálculo de longo prazo, paciência e autocontrole são traços inconfundíveis de maturidade. Adultos - e governos - que não conseguem olhar além do aqui-agora estão condenados a repetir o triste papel da cigarra.
Como se sabe, a cigarra folgou o verão inteiro e foi bater à porta da formiga. Quer comida. Não tem "migalha" alguma para atravessar o inverno porque passou "noite e dia" cantando. "Cantavas? Pois dança agora!", exulta a formiga, pondo fim à fábula atribuída a Esopo, na versão de Bocage para o texto de La Fontaine.
Fim? Talvez não seja o fim. Quem sabe a lição de moral se faça mais clara se a cigarra, como os personagens de Hollywood, tiver uma segunda chance. Por exemplo: a formiga cede e empresta algum grão à cigarra, que aprende a lição e aproveita resto do inverno para traçar um cenário realista de suas necessidades e desenhar um meticuloso plano de ação. Mas chega a primavera, e o apelo da estação é irresistível: a cigarra decide rolar suas dívidas, vem mais um inverno, ainda mais rigoroso, os juros sobem, mais dívidas. A cigarra bola um plano de ajuste fiscal... Ou então: a cigarra aprende, renegocia sua dívida e junta provisões em quantidade suficiente para quitar todos os débitos e atravessar com folga o inverno, por mais rigoroso que seja. Aí mexem no indexador da dívida... Quer dizer: é preciso mais do que boa vontade para romper a sina da cigarra.
A cigarra e suas circunstâncias - A cigarra e a formiga coabitam nosso cérebro, explicou o economista Eduardo Giannetti em O Valor do Amanhã. Há uma região própria para as maquinações da formiga, o chamado córtex pré-frontal, e outra mais sensível ao imediatismo da cigarra, o sistema límbico. Sexo e drogas apelam ao sistema límbico. Fundos de previdência, abstinência e balanço de pagamentos falam ao córtex pré-frontal. O resultado: uma inquietante dupla personalidade. É a formiga que põe o despertador ao se deitar, mas quem o desliga na manhã seguinte é a cigarra - que decide ficar mais um pouquinho na cama. É a formiga que começa a dieta na segunda, mas é a cigarra que aparece no churrasco do fim de semana.
A sedução do aqui-agora é tão poderosa que a disposição para o autocontrole passou praticamente batida pela diferenciação dos grandes primatas. Na verdade, do ponto de vista evolutivo, um chimpanzé está até mais bem equipado que Ulisses para resistir ao canto das sereias: estudos comportamentais demonstram que o homem sucumbe mais rapidamente às tentações que o macaco - e se sai um pouco melhor que o bonobo, o primo menor e mais dócil do chimpanzé. O herói, por sua vez, tem plena consciência dos limites de sua própria força de vontade. E é o que lhe basta: ciente de sua impotência, ele se faz amarrar ao mastro, conforme a célebre passagem da Odisseia, de Homero.
Como Ulisses, estados modernos não perdem de vista o perigo de cair em tentação. Por isso, ao longo da história, adotaram uma série de instrumentos para frear os impulsos da cigarra e recompensar o cálculo da formiga. O Brasil conhece alguns: metas de inflação e superávit, lei de responsabilidade fiscal, lei orçamentária, prestação de contas públicas, agências reguladoras independentes etc. No entanto, esses altos compromissos são frequentemente descumpridos, como se viu com Dilma Rousseff. "Há no Brasil um enorme descompromisso com o fazer, com a ação. Normas muito exigentes não adiantam se há um déficit de execução", diz Giannetti. "
Como se sabe, a cigarra folgou o verão inteiro e foi bater à porta da formiga. Quer comida. Não tem "migalha" alguma para atravessar o inverno porque passou "noite e dia" cantando. "Cantavas? Pois dança agora!", exulta a formiga, pondo fim à fábula atribuída a Esopo, na versão de Bocage para o texto de La Fontaine.
Fim? Talvez não seja o fim. Quem sabe a lição de moral se faça mais clara se a cigarra, como os personagens de Hollywood, tiver uma segunda chance. Por exemplo: a formiga cede e empresta algum grão à cigarra, que aprende a lição e aproveita resto do inverno para traçar um cenário realista de suas necessidades e desenhar um meticuloso plano de ação. Mas chega a primavera, e o apelo da estação é irresistível: a cigarra decide rolar suas dívidas, vem mais um inverno, ainda mais rigoroso, os juros sobem, mais dívidas. A cigarra bola um plano de ajuste fiscal... Ou então: a cigarra aprende, renegocia sua dívida e junta provisões em quantidade suficiente para quitar todos os débitos e atravessar com folga o inverno, por mais rigoroso que seja. Aí mexem no indexador da dívida... Quer dizer: é preciso mais do que boa vontade para romper a sina da cigarra.
A cigarra e suas circunstâncias - A cigarra e a formiga coabitam nosso cérebro, explicou o economista Eduardo Giannetti em O Valor do Amanhã. Há uma região própria para as maquinações da formiga, o chamado córtex pré-frontal, e outra mais sensível ao imediatismo da cigarra, o sistema límbico. Sexo e drogas apelam ao sistema límbico. Fundos de previdência, abstinência e balanço de pagamentos falam ao córtex pré-frontal. O resultado: uma inquietante dupla personalidade. É a formiga que põe o despertador ao se deitar, mas quem o desliga na manhã seguinte é a cigarra - que decide ficar mais um pouquinho na cama. É a formiga que começa a dieta na segunda, mas é a cigarra que aparece no churrasco do fim de semana.
A sedução do aqui-agora é tão poderosa que a disposição para o autocontrole passou praticamente batida pela diferenciação dos grandes primatas. Na verdade, do ponto de vista evolutivo, um chimpanzé está até mais bem equipado que Ulisses para resistir ao canto das sereias: estudos comportamentais demonstram que o homem sucumbe mais rapidamente às tentações que o macaco - e se sai um pouco melhor que o bonobo, o primo menor e mais dócil do chimpanzé. O herói, por sua vez, tem plena consciência dos limites de sua própria força de vontade. E é o que lhe basta: ciente de sua impotência, ele se faz amarrar ao mastro, conforme a célebre passagem da Odisseia, de Homero.
Como Ulisses, estados modernos não perdem de vista o perigo de cair em tentação. Por isso, ao longo da história, adotaram uma série de instrumentos para frear os impulsos da cigarra e recompensar o cálculo da formiga. O Brasil conhece alguns: metas de inflação e superávit, lei de responsabilidade fiscal, lei orçamentária, prestação de contas públicas, agências reguladoras independentes etc. No entanto, esses altos compromissos são frequentemente descumpridos, como se viu com Dilma Rousseff. "Há no Brasil um enorme descompromisso com o fazer, com a ação. Normas muito exigentes não adiantam se há um déficit de execução", diz Giannetti. "
O Plano Real foi uma promessa de amadurecimento, assim como a transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Lula", diz Giannetti. "Infelizmente, a partir do segundo mandato do Lula e principalmente durante o governo Dilma, houve um enorme retrocesso."
Desalento - Como informa o subtítulo, O Valor do Amanhã é um "ensaio sobre a natureza dos juros". Giannetti recorre à neurociência e à evolução porque, para além da economia, busca explicá-los como os "termos de troca entre o presente e o futuro": "o prêmio da espera, na ponta credora, ou o preço da impaciência, na ponta devedora". Posta dessa forma, a realidade dos juros surge tanto nas finanças, como no comportamento humano e no próprio ciclo de vida. Seguindo este rastro, o economista chega a um diagnóstico preciso das dificuldades do país para manter-se na trilha do desenvolvimento econômico e, particularmente, a razão para as altíssimas taxas praticadas no país. "O Brasil tem a vocação do crescimento, sem a vocação da poupança", diz, adaptando descrição de Machado de Assis de certo personagem que nascera "com a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho". Resultado: inflação, crise fiscal, juros altos.
As baixíssimas taxas de investimento e poupança do país, versus a escalada da carga tributária, refletem a impaciência do país. "Em 1988, a carga tributária bruta do país era de 24% do PIB. Hoje é 36%. No mesmo período, a capacidade de investimento do estado brasileiro caiu: foi de 3% do PIB em 1988 para 2,5%", explica o economista. "Ou seja, o estado drena uma fatia desproporcional do valor criado pelo trabalho dos brasileiros e o transforma não em poupança, nem em investimento, mas em gasto corrente."
O Valor do Amanhã foi lançado em 2005. Uma leitura atenta teria feito bem ao governo petista. Mas Lula tinha acabado de colher um resultado econômico vistoso - crescimento de 5,7%, o maior em dez anos. As cigarras se assanhavam... No segundo mandato do petista, o consumo se tornaria o motor principal da economia, até a completa exaustão das contas públicas, com Dilma. Um dos dados mais desalentadores divulgados pelo IBGE, no cômputo do produto interno bruto de 2014, é justamente o resultado da formação bruta de capital fixo, o indicador de investimento: despencou 4,4% no ano passado. Ao final do primeiro mandato de Dilma, o setor produtivo não quer saber de... produzir. O indicador de poupança bruta também regrediu com força: de 19,4% em 2011 para 15,8% em 2014.
(continua)
Desalento - Como informa o subtítulo, O Valor do Amanhã é um "ensaio sobre a natureza dos juros". Giannetti recorre à neurociência e à evolução porque, para além da economia, busca explicá-los como os "termos de troca entre o presente e o futuro": "o prêmio da espera, na ponta credora, ou o preço da impaciência, na ponta devedora". Posta dessa forma, a realidade dos juros surge tanto nas finanças, como no comportamento humano e no próprio ciclo de vida. Seguindo este rastro, o economista chega a um diagnóstico preciso das dificuldades do país para manter-se na trilha do desenvolvimento econômico e, particularmente, a razão para as altíssimas taxas praticadas no país. "O Brasil tem a vocação do crescimento, sem a vocação da poupança", diz, adaptando descrição de Machado de Assis de certo personagem que nascera "com a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho". Resultado: inflação, crise fiscal, juros altos.
As baixíssimas taxas de investimento e poupança do país, versus a escalada da carga tributária, refletem a impaciência do país. "Em 1988, a carga tributária bruta do país era de 24% do PIB. Hoje é 36%. No mesmo período, a capacidade de investimento do estado brasileiro caiu: foi de 3% do PIB em 1988 para 2,5%", explica o economista. "Ou seja, o estado drena uma fatia desproporcional do valor criado pelo trabalho dos brasileiros e o transforma não em poupança, nem em investimento, mas em gasto corrente."
O Valor do Amanhã foi lançado em 2005. Uma leitura atenta teria feito bem ao governo petista. Mas Lula tinha acabado de colher um resultado econômico vistoso - crescimento de 5,7%, o maior em dez anos. As cigarras se assanhavam... No segundo mandato do petista, o consumo se tornaria o motor principal da economia, até a completa exaustão das contas públicas, com Dilma. Um dos dados mais desalentadores divulgados pelo IBGE, no cômputo do produto interno bruto de 2014, é justamente o resultado da formação bruta de capital fixo, o indicador de investimento: despencou 4,4% no ano passado. Ao final do primeiro mandato de Dilma, o setor produtivo não quer saber de... produzir. O indicador de poupança bruta também regrediu com força: de 19,4% em 2011 para 15,8% em 2014.
(continua)
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